Futebol científico, a tradição do sarrafo, um barquinho na lagoa
- (…) portanto, para debatermos esse tema, gostaríamos de convidar ao palco o emérito professor da Universidade da Califórnia, Doutor João Sarapintado y Lopez.
(O público aplaude, mas o Doutor João Sarapintado y Lopez, sentado na primeira fila, não se move, porque está furiosamente empenhado em abrir um pacote de jujuba; alguém o cutuca, ele põe o saco de jujubas no bolso do paletó, apóia-se na bengala cujo castão é a cabeça do Mickey Mouse e se dirige ao palco; quinze minutos depois ele se senta na posição central da mesa).
- Boa noite a todos. Muito honrado pelo convite, gostaria de começar com uma história que aconteceu comigo décadas atrás, na minha terra natal, Quinta do Dadim, um povoado quase ao pé da Serra das Falperras, em Braga, onde se fazia o melhor toucinho do céu do mundo, talvez até de toda a Península Ibérica. Alguém aqui já comeu toucinho do céu? Muito bem. A receita é assim: você põe a farinha de amêndoa no…
- Deve ser uma receita bem saborosa, Doutor João, mas achamos que mais saborosas serão suas palavras sobre o nosso tema, “Para Jogar Futebol não Basta Depilar as Pernas”. O senhor poderia nos dizer, por exemplo, em que momento de sua vida passou a se interessar pela relação entre esportes e ciência?
- Ah, sim, perdão. Se me permite, gostaria apenas de registrar que no preparo do toucinho do céu você deve descartar a clara do ovo, use apenas as gemas. - Uma senhora na segunda fila abriu um moleskine e anotou alguma coisa. - Bom, respondendo ao que me perguntou, eu era o vigoroso center-four do Espinheiro Futebol Club. Um dia, partida final do intermunicipal, subi para cabecear uma bola e mordi a língua. Saí de campo sangrando e me maldizendo. Porque morder a língua jogando bola não é a mesma coisa de morder a língua, sei lá, comendo toucinho do céu.
Enquanto me dirigia ao vestiário, comecei a passar a língua pelas paredes internas da boca, apertei-a contra os molares, e a língua foi se tornando assim, como direi?, um trampolim para um universo novo e maravilhoso de dúvidas, de perguntas, desse desconcerto que é a antessala da ciência. Eu estava debaixo do chuveiro, ainda cuspindo sangue, quando surgiu a pergunta que me acompanhou durante muito tempo e que foi a semente para vários de meus artigos publicados em revistas desta prestigiada casa: Por que mordemos a língua quando estamos tentando passar a linha no buraco da agulha? Foi assim que comecei minha vida de pesquisador.
- Excelente, Doutor João, mas voltando ao tema do futebol…
- Ah, claro. Para ir direto ao assunto, mulher não sabe jogar futebol. Não sabe e não tem como aprender. Trata-se do imperativo biológico.
(Rumor na platéia, pés se arratando, risadinhas).
- O senhor poderia explicar isso com mais detalhes? Não é um argumento muito fácil de compreender… desse modo… como o senhor chegou a essa conclusão?
- Foi simples. Eu estava passando férias na fazenda da família e meus netos e sobrinhos-netos estavam jogando futebol em um espaço que tinha ao fundo uma criação de aves. Patos e galinhas, sabe? Era uma disputa que misturava meninos e meninas. As crianças e as aves estavam no mesmo campo de visão, e eu não pude deixar de perceber, pela sobreposição de imagens (método que reputo de valor científico), que havia uma correspondência entre os movimentos das meninas e os dos patos.
- Dos patos?
- Sim. As meninas corriam feito patos, desengonçadas. Os meninos corriam feito galos, as meninas mal conseguiam mudar sua trajetória rapidamente durante uma corrida em linha reta sem caírem estabanadas no chão.
- Patas desengonçadas?
- Patas desengonçadas.
- No entanto, há mulheres que jogam futebol profissional satisfatoriamente…
- São as de quadris estreitos. Más parideiras.
(Rumor, arrastado de pés, etc)
- Centro de gravidade, sabe? Do mesmo modo, sob o mesmo critério, elas se saem bem melhor do que os homens quando o assunto é andar de patinete. Tivesse aqui uma lousa e eu mostraria como ficam os vetores, mas se puderem me compreender é mais ou menos o seguinte… - Doutor João começa a fazer uns gestos largos com os braços enquanto explica o funcionamento dos vetores - … daí que é impossível jogar futebol mesmo usando um patinete - e conclui um pouco ofegante.
- Compreendo… Doutor João, acho que podemos começar a ouvir as perguntas da platéia.
- Pois não - disse o cientista, ajeitando a gravata.
Uma senhora na terceira fila levanta a mão. Um rapaz magricela entrega a ela um microfone. Ela dá duas batidinhas no microfone e diz:
- Boa noite, gostaria de perguntar ao Doutor João se posso usar castanha no lugar da amêndoa no toucinho do céu, por causa da alergia.
Quando telefona para um amigo que está em outra cidade e pergunta como vai o clima, você não está interessado em saber como vai o clima.
Você não espera ouvir um número: aqui faz 32 graus. Essa informação você pode obter no boletim do tempo dos jornais.
Você pergunta ao seu amigo como vai o clima porque quer saber qual a impressão que seu amigo tem do clima. O dado objetivo, 32 graus, pouco interessa.
Seu amigo responderá alguma coisa como "Tá de fritar ovo no asfalto", ou, se for mais criativo, criará uma símile original.
Seu amigo não dirá "32 graus" porque sabe que conversar é contar histórias. As pessoas querem contar eouvir histórias. Queremos que venha à tona, por meio da palavra, a descrição de uma experiência.
Mas não queremos contar uma história de qualquer jeito. Queremos que ela contenha a nossa marca. Esse esforço é mais do que uma satisfação egoísta. Existe aí uma intenção quase subterrânea de enriquecer o terreno onde as histórias florescem.
Queremos contar bem uma história porque isso, de algum modo, aumentará as chances de um dia ouvirmos uma história agradável.
E aqui entra a literatura. Enriquecemos e ampliamos os meios e as formas de contar histórias quando fazemos subir ao palco os grandes escritores, sobretudo os autores de histórias já sedimentadas na tradição.
A tradição literária nos impõe um desafio. Diante dos mestres, estamos obrigados a pelo menos demonstrar o esforço necessário para superá-los, embora saibamos que dificlmente conseguiremos igualá-los.
A tradição eleva o sarrafo e deixa o recado: pule.
Trata-se, claro, de um embuste bem intencionado. Não há como dizer que Rabelais superou Aristófanes.
O que acontece é que aqueles que conseguem saltar sobre o sarrafo sem derrubá-lo acabam se incorporando a essa mesma tradição em que Aristófanes e Rabelais se agitam, recusando-se ambos a ocupar um trono fixo.
O esforço necessário para esse salto quase sempre é insuficiente, mas fortalecerá o espírito e a imaginação, enriquecendo a linguagem e ampliando as possibilidades de expressão.
No confronto contra os gigantes, ninguém sai menor do que entrou. Depois de tanto ouvir Nava, Tolstoi, Montaigné, Tchekov, R. Chandler, Eça, será difícil se contentar com um "tá de fritar ovo no asfalto" quando um amigo perguntar como vai o clima.
Se esse novo domínio lhe der a segurança necessária para entrar na sala da escrita, ótimo. Se não, ótimo também. No fim das contas, você já habita um universo ampliado pela imaginação e pela linguagem, e já será um deleite poder ouvir as histórias que você conta para si mesmo.
Mais do que um lar, um lugar, um espaço, queremos, da porta até o lago, um gramado, algumas pedrinhas para chutar, uns espinhos para amaldiçoar, umas tantas nuvens para contemplar, um céu infinito a nos abençoar, uma faixa de luz que, riscando a água, aponta para o barquinho dorminhoco que nos convida a um passeio promentendo nos trazer de volta quando a sinfonia das cigarras se erguer na margem.
No fim da tarde, bateremos os pés enlameados na soleira e, olhando para trás, diremos: está ainda tudo ali, até amanhã.