1.
A filosofia francesa, assim como qualquer outra, arcaica ou estalando de nova, certamente apresenta mais de uma explicação, sabe-se lá em quais compêndios, para essa necessidade humana de emular em alguns aspectos a vida dos pássaros. Seja pela variação do clima, seja pela indução produzida por elementos que a própria filosofia, francesa ou indiana, ainda não consegue enumerar, esses dois tipos de bípedes têm o hábito de cogitar novos destinos mal pousam em um fio. O caso da família Pádua, como veremos, não escapa dessa disposição, embora vários anos tenham se interposto entre o pouso, festivo e ornado, e a partida que é o objeto deste relato; afinal, convém considerar, o tempo dos pássaros é um, o dos homens é outro.
No dia da partida, a família Pádua acordou cedo, como era de costume. Porém, nesta manhã em que a rotina fora sacrificada em nome dos preparativos da partida, os passos eram mais céleres e os espíritos azafamados afastavam a atmosfera sonolenta que nos dias normais demorava a se dissipar.
Maria Amélia aplicava um ar severo na voz. Embora soasse imperiosa, mal conseguia disfarçar o tom afetuoso de um arrulho:
“O carro chegou, Bernadete! Corre e ajunta as malas pequenas ali no canto! Já viu os quartos? Vê os quartos, anda, anda!”
“Peguei tudo, mãe. Falta dar um nó nessa trouxa. Onde tem cordão?”
Das filhas, Bernadete era a mais industriosa, em quem a mãe se fiava quando tinha de pedir ajuda nas atividades domésticas que exigiam maior empenho. A outra, Elisabete, o pai a chamava de apimentada, um pouco desastrada, mas “excelente na matemática, vai ser professora”.
“Henriqueta, ficou alguma roupa no quintal? Tinha um lençol estendido lá, mais cedo…”
“O tio Amintas anda de novo atrasado.”
“Bebendo!, será? Nem meio-dia…”
“A espada-de-são-jorge vai?”
“Pergunta a Cassiano se ele fica com os periquitos.”
E assim, rumoroso, começou o dia de mudança da família Pádua. O caso é que Manoel de Pádua e Maria Amélia decidiram viver na capital. Pensavam que as chances de uma boa fortuna para as filhas floresceriam com mais vigor na cidade. Bernadete concluíra o colegial no ano anterior. Elisabete seria normalista no Dorotéias. Tomada a decisão de partir, Manoel pediu as contas na prefeitura, onde acumulou durante dezesseis anos as funções de tesoureiro e fiscal do orçamento de obras. Nesse período, guardou algum dinheiro que, somado àquele obtido com a venda da chácara, lhes permitiria viver alguns meses até que uma nova empreitada na capital, já planejada, se estabelecesse.
2.
Caía uma chuvinha que quase não chegava no chão. Sentado no estribo da Kombi do Anacleto, o chefe da casa tomava café e observava o tropel. Em situações assim, quando ações de ordem doméstica tinham de ser executadas em pouco tempo, ele se abstinha de participar e deixava tudo a cargo da esposa.
“Não me intrometo, Anacleto. Não importa se eu faço ou não faço, para dona Maria será sempre mal feito. Deixo lá ela cuidando de tudo do jeito dela”, disse, misturando ao sopro no café um suspiro de resignação. O motorista, mordendo um palito, anuiu, menos por acreditar nessa justificativa do que pelos acordos tácitos que sustentam a camaradagem masculina.
Naquele momento, Maria Amélia cuidava de tudo, ou do que restava para cuidar, porque a maior parte da bagagem, composta de objetos grandes e de alguns móveis pequenos, havia sido despachada de caminhão no dia anterior; ficou apenas o necessário para uma noite: bule, lençóis, garrafas, pratos, redes de dormir, um fogareiro e outros artefatos que, por razões de segurança e espaço, não foram atrelados ao caminhão.
“Ô, Elisabete! Não esquece as mangas da Janete”, disse Manoel quando viu a menina se aproximar puxando um caixote de madeira contendo peças de louça enroladas em folhas de jornal. Esbaforida, com os rizomas salientes já rubros, ela resmungou alguma coisa; em resposta, o pai lhe fez uma festinha na cabeça e estalou no ar uma bitoca.
“Essa é arisca, Anacleto, mas de inteira obediência”, disse, puxando do bolso da calça o estojo do cachimbo.
Uma das primeiras providências de Manoel para a grande empreitada foi arranjar com Janete, a irmã há muito instalada na capital, uma moradia temporária na casa adjacente à dela, mantida fechada desde a morte da mãe, que lá suportou o peso de sua curta viuvez. Isso ficou acertado tão logo o assunto da mudança deixou de ser apenas uma conjectura, embora Maria Amélia tenha de início se manifestado insatisfeita com o arranjo, uma objeção que ruiu diante da promessa feita por Manoel de que um novo lar seria providenciado em menos de seis meses.
Não eram dez horas e quase tudo estava pronto para a partida. A folhagem vibrava revigorada pelo açoite de uma borrasca que chegou de repente, prenunciando a época da canícula. Uma ventania açoitou a copa das árvores e fez dançar folhas caídas.
Ajeitando o coque, Maria Amélia sentou-se na mureta do alpendre; assaltou-lhe então o desassossego natural de quem está prestes a abandonar um lugar seguro. Uma ponta de melancolia feria-lhe o peito, obrigando-a a se refugiar em um estado de contemplação ampliado pelo tom embaçado que a chuva inesperada aplicava à luz matinal.
Desde o início de sua escalada, o sol, empunhando um lume cor de palha, esgarçava o véu cinza urdido pelos dedos gelados da madrugada. Descia das lâminas da encosta uma aragem que encrespava a mata, varria os pés dos morros e arrastava em torvelinhos o cheiro de frutas podres e de estrume. Ao zumbido das vespas se misturava o farfalho de um velho umbuzeiro cuja sombra se escorava na fachada amarela do chalé e cujos galhos espargiam sobre as galinhas ali abrigadas os excessos da garoa. O vagido de um garrote perdido ecoou ao longe.
Maria Amélia aprumou o olhar na claridade e escrutinou a freguesia. O cenário familiar se apresentava inalterado, mas agora era como se os elementos que o compunham se revelassem em alto contraste, oferecendo a marca definitiva da história que desejavam fixar na memória do observador. No lado oposto da rua, o Bernardo do açougue amolava acocorado um cutelo na pedra; mais adiante, o velho Osman, com seu cofió engelhado abrigando a cachimônia, martelava o mourão do galinheiro; Neuza, a costureira, esgueirava-se na janela tirando do novelo um fio que cintilava numa réstia de luz.
Alguns vizinhos se acercaram. Uns apenas observavam; outros se punham a ajudar, carregando sacolas, malas, embrulhos. Henriqueta desde cedo se destacava no segundo grupo. Afogueada, corria de um cômodo a outro - a testa arrugada, a alça do vestido caindo do ombro - averiguando se nada esqueciam. Quinze anos de fraterno convívio com os Páduas - dividindo uma cerca que tinha até um portãozinho comunicando os quintais - forneciam-lhe a liberdade necessária para vasculhar detidamente os cômodos. Na sala de jantar, encontrou uma Nossa Senhora da Assunção de louça em um nicho na junção das paredes. Na cozinha, soltou um gritinho porque confundiu com um rato a lamparina enferrujada deitada debaixo da pia. No quarto de casal, abriu portas e gavetas do guarda-roupas de cedro, mas nada havia além de bolinhas de naftalina. O guarda-roupas ficaria para trás porque, grande e pesado, não se achou meio adequado para transportá-lo; faria companhia ao pote de barro da cozinha, considerado frágil demais para resistir aos solavancos nos aclives e declives da estrada de piçarra (“Um não vai porque é forte demais, o outro, fraco”, pensou). Certa de que nada restava além do que deveria ficar, saiu levando a santa.
“Não me esqueça a Nossa Senhora, cumade”, disse, deitando com zelo a estátua nos braços de Maria Amélia que, ainda sentada na mureta do alpendre, acolheu-a de modo maternal. As duas amigas miraram a face da Nossa Senhora e depois trocaram entre si olhares de ternura, como se esta comunhão representasse um ato solene em um rito de despedida presidido pela própria mãe do Senhor.
“Ai, cumade, a capital…”
“Só tem um céu, Henriqueta. Que importa onde a gente se abriga? Deixe de pieguice.”
A amiga franziu o sobrolho tentando elucidar o que aquilo significava. Sem êxito, assentiu erguendo levemente as comissuras. Um silêncio se instalou, mas foi rompido quando uma das meninas passou ali perto carregando uma gaiola em cujo bojo um casal de periquitos estridentes tentava se equilibrar.
“Elisabete, traz aqui cordel e papel para embalar a santa”, disse Henriqueta, a voz afinada pela tristeza contida.
Lá fora, Manoel de Pádua, com um pé apoiado no estribo da Kombi, puxava cachimbo. A lembrança da chuva da noite anterior ensejou uma negociação sobre o trajeto que os levaria à estrada principal.
“Melhor pela Gado do Maurício. Custa mais tempo, mas evita a passagem molhada da Queda do Ribeiro”, dizia Anacleto, acendendo um palheiro.
“Me lembou já ter ficado ali na lama da Queda. Pela via do Gado chegamos na Ladeira Baixa a tempo do almoço?”
“E ainda sobra para o sono.”
Nesse momento, ouvem o rumor do cascalho. Nas costas de um matungo, de pele rosada e bem posto em paletó de linho claro que fazia estranho conjunto com as alpercatas de couro, a figura esguia e elegante do tio Amintas contrastava com o esquálido rocinante.
O galalau desceu claudicante, bateu nas pernas para limpar a poeira, equilibrou-se o quanto podia e abraçou o cunhado, que não foi capaz de refrear um gesto de repugnância ao ser bafejado com o gás da cachaça.
“Assim, já assim, afogueado? Essa não é sua roupa de festa? Varou a noite, camarada?”
“Sabe lá quando veremos de novo a rapaziada! Precisava da saída triunfal, Manoelito… Vou para a capital, mas deixo eternizado meu nome nas paredes daquele botequim.”
“Em letras garrafais, ao lado da dívida.”, emendou Manoel.
“Escritas com a tinta adocicada do vermute”, completou Amintas, e com um meneio assumiu uma postura cênica para riscar o ar como quem traça um arabesco.
Amansando os bigodes cor de fumo com a palma da mão, Anacleto se divertia com a pantomima. Conhecia de copo o maganão e com ele simpatizava. Abriu a traseira da Kombi.
“Vai aqui o Amintas? Que os credores estejam dormindo, e também o boticário.”
“Boatos, senhores! Apenas rumores!”
Com um bufo de resignação, Manoel sentou-se novamente no estribo, pôs de lado o chapéu e com uma mão encovada sobre o fornilho acendeu o cachimbo.
“Cabe bem aí, esse mariola que se vê uma lenda”, disse, ao fim, com um gesto amplo, ao mesmo tempo galhofeiro e conciliador.
As mulheres e as crianças ainda rodopiavam ao redor da casa. Elisabete dobrava panos em uma caixa, trauteando uma moda. Na soleira amontoavam-se alguns utensílios que Maria Amélia usara no preparo do café da manhã, composto de: cuscuz, ovo caipira, leite, café coado, nata, tudo posto como se fazia diariamente desde que o casal chegou para morar na casa cedida pelo pai de Manoel, quase duas décadas atrás.
Chegava a hora. Maria Amélia desceu para perto da Kombi.
“Amintas, ajuda com as galinhas? Vou levar só duas: a vermelha e a franguinha branca. Ah, e o galo da crista partida. As outras ficam com a Henriqueta, ela já sabe.”
E se dirigindo ao marido:
“Manoel, e a cadeira-de-balanço? Esqueceram de pôr no caminhão. Vamos levar? Decida logo, que está ficando tarde.”
“Não tem pressa, cumade!”, disse Anacleto, inspecionando a firmeza do escapamento. “Se Deus nos der um céu limpo, chegaremos na capital antes da noite cair.”
“A cadeira vai de um jeito ou de outro”, atalhou Amintas, “nem que eu tenha de ir agarrado com ela no teto da Kombi, não tem jeito de eu me despregar dela; deixa lá que eu pego depois de amarrar o cavalo.”
Abraços e lágrimas foram trocados com os vizinhos, promessas de visita nas festas foram feitas. O último item da bagagem foi encaixado no interior da Kombi: um caçuá de cujas brechas brotavam nervosas e avermelhadas três cabeças pipilantes.
“Henriqueta, fique com o restante dos móveis”, disse Maria Amélia pela terceira ou quarta vez naquela manhã.
Na partida do motor, as meninas, feito aves no caçuá, puseram fora as cabeças e acenaram aos vizinhos perfilados diante do chalé vazio. Henriqueta não devolveu os acenos, porque, como era de seu costume quando apertava o choro, ocupava as mãos com um nó na ponta da saia. A Kombi entrou em uma curva, selando a despedida. Três quartos de hora depois, eles se sacolejavam na estrada do Gado do Maurício.
Os vizinhos se dispersaram. Henriqueta foi até a cozinha e ficou um tempo escorada na ombreira da porta, sondando com uma carantonha os rastros dos eventos recentes. Entrou no quarto de casal e empurrou o ferrolho da janela. Abriu e fechou a gaveta do criado-mudo, sentou-se na beira da cama e pensou: fico com o guarda-roupas, o pote é da Neuza.
3.
O veículo subia e descia entre as margens ásperas da estrada. As entradas nos trechos mais inclinados e sinuosos obrigavam o guia a fazer um vai-e-vem a ver se mantinha o veículo aprumado e longe dos barrancos. A lataria velha, a estrada ruim, as miudezas da bagagem, tudo tornava a viagem bastante ruidosa. Em uma ocasião chegaram a ouvir, não sem susto, um estrondo seguido de uma espécie de estalo, o que Anacleto atribuiu a um galho caído partido pela roda do veículo. Duas vezes tiveram de esperar rebanhos passar. As meninas acompanhavam silenciosas o desenrolar da paisagem. Algumas nuvens pareciam se agarrar ao topo esfumado das colinas mais distantes. Aqui e ali surgiam aglomerados de pedras grandes e arredondadas que se assemelhavam a vacas deitadas. Mais para cima, uma casinha solitária cravada em uma rocha chata acima de uma fauce lançava do teto um penacho branco de fumaça. A meio da subida, um pároco pançudo que se equilibrava nas costas de um burrico ergueu o chapéu para cumprimentá-los ainda de costas, antes mesmo de ser alcançado pelo veículo.
Pouco depois do meio-dia chegaram à Ladeira Baixa e pararam em uma fazenda que oferecia serviço de hospedagem e restaurante. Almoçaram um cozido de peito gordo com pirão e batata-doce. Anacleto tomou meio bule de café a ver se espantava a sonolência. Maria Amélia servia mais refresco de cajá para as meninas. Manoel ergueu-se ainda mastigando o último bocado e se dirigiu para o beiral do alpendre, onde sacou do bolso o cachimbo.
A viagem foi retomada quando as franjas do sol já roçavam o cume das montanhas mais altas, que luziam feito placas de cobre. Um quarto de hora depois, alcançaram a estrada de terra plana. Anacleto fazia resfolegar a máquina, deixando para trás um rastro de fumo escuro e o canto da saparia.
A estrada mais plana trouxe alguma tranqüilidade, com o que Maria Amélia se permitia cochilar. De vez em quando abria os olhos sobressaltada, como se percebesse ter esquecido alguma coisa, mas logo o cansaço a obrigava a voltar ao repouso. Manoel se atinha a contar anedotas para Anacleto, aproximando-se e cochichando no ouvido do motorista os trechos que considerava impróprios ao ouvido das meninas.
Assim, chegaram à capital um pouco depois da Ave-Maria, quando ainda puderam testemunhar os últimos vestígios encarnados do crepúsculo escoando pelos muros das casas. Podiam ainda ouvir o eco de um sino.
Encolhidas, as galinhas crocitavam uma conversa de bichos aturdidos; o galo da crista partida, ainda com o pescoço fora do caçuá, bateu as asas, prometendo um canto, mas entregou apenas um lamento rouco. “Endoidou.”, disse Elisabete, “Pensa que já é amanhã.”
Mal a Kombi entrou na Rua da Piedade, avistaram Janete sentada no degrau do portão de entrada. Anacleto estacionou, Manoel desceu e deu a mão à Maria Amélia. As meninas formaram uma fila para abraçar Janete.
Com um sorriso, as mãos cruzadas nas costas, Manoel contemplava a cena, esperando sua vez.
“Minha irmã, como vai?”
“Aliviada que vocês chegaram bem.”
Anacleto, descarregando a bagagem, protestou, zombeteiro: “E como não haveriam de chegar?”
Maria Amélia aninhou as mãos de Janete entre as suas e com os olhos rútilos transmitiu seu agradecimento à cunhada. Em seguida deu às meninas uma ordem para ajudar no desembarque da bagagem.
“Anacleto quer voltar ainda hoje, meninas.”
Desta vez, Manoel se uniu ao grupo de trabalho, dizendo baixinho para o motorista:
“Desmontar é mais fácil que montar, meu amigo.”
“É, pois então...”
“Vou deixar essa jeropiga aqui para lhe acompanhar na volta.”
“Aí eu dei valor.”
Tudo pronto, Anacleto agradeceu, pôs o pagamento no bolso da camisa, acendeu um palheiro, enxugou o cachaço suado com uma flanela, ligou o motor, acenou e partiu.
4.
“Vamos entrar que vem chuva.”
“A gente trouxe manga.”, disse Elisabete, desatando a boca de um saco roto encostado perto da soleira, depois do que ganhou da tia um beijo na bochecha.
Janete mostrou os cômodos que a família ocuparia na pequena casa lateral, onde encontraram a mobília trazida pelo caminhão um dia antes: camas, mesas e cadeiras. Nas últimas horas, ela cuidou da arrumação e da limpeza dos aposentos. As meninas ficariam no quarto mais espaçoso. Ao casal foi destinada a alcova que pertencera à sogra de Maria Amélia. Desfizeram as malas, tomaram banho e se revigoraram com uma sopa servida em uma bonita malga louçã ornada com ramos azuis, guardada com desvelo para ocasiões especiais.
Já descansados, espalharam-se pelo pequeno jardim de entrada. Bafejados por uma brisa fresca, falaram sobre a vida na serra e os planos para a cidade. Manoel trabalharia com Vianey, o primo corretor de imóveis. Tão logo amealhasse dinheiro suficiente, compraria uma casa ali, no mesmo bairro, perto da irmã.
“Mas até lá ajudarei com as despesas, Janete, e não gaste tempo tentando recusar. Tenho uma reserva.”
Noite cerrada, o prenúncio de chuva se confirmou, obrigando-os a entrar. A conversa continuou e seguiu o rumo das recordações. Janete relembrou o dia quando ela e Alberto desceram para viver na cidade, os percalços no primeiro ano do marido como almoxarife na tecelagem, a sua doença pulmonar.
“Que Deus o tenha!”, disse a viúva, e todos miraram o chão em breve silêncio.
“Mas e lá? Como estão todos? A Noélia, a Neuzinha? E o velho Benício? O padre Dimas ainda reclama da gota durante a homilia? Amintas bebe menos?”
Ao ouvir o nome do irmão, Maria Amélia sobressaltou-se. Não precisou dizer palavra, porque ato contínuo todos os recém-chegados se deram conta de que não viam o tio Amintas desde a partida.
“Vai ver ficou em cima da Kombi.”, brincou Manoel.
“Ou vem a cavalo.”, disse Bernadete.
“Falou alguma coisa sobre entregar o cavalo ao Cassiano.”
“Teria descido para o almoço na Ladeira…”
“E não desceu? Vocês viram o tio Amintas no almoço, meninas?”
Elas se olharam esperando uma a resposta da outra, o que foi resposta suficiente.
"A correria, Janete, foi tão corrido…"
Seguiram-se mais especulações, mas o alarido logo cessou. Conformaram-se com a hipótese mais simples, a de que o tio Amintas talvez não tenha embarcado. Deixaram para o dia seguinte a tarefa de descobrir o motivo disso, porque o barulho da chuva grossa sobre o telhado convidava-os ao recolhimento devido a viajantes no fim da jornada.
O dia dos Páduas, nascido em um roldão, findou pacificamente sob o calor de um teto que tinha como testemunha um céu nebuloso, o mesmo céu que o tio Amintas, um pouco mais próximo dele, contemplava espichado na cadeira-de-balanço, girando na ponta dos dedos um copinho de zinebra, agitando os vapores de uma cerração densa demais para aquela época do ano.
Por um instante esqueci que estava lendo um conto. E o que dizer das personagens? É como se já as conhecesse há muito tempo.